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Enterrados no Jardim

Enterrados no Jardim

Auteur(s): Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho
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À propos de cet audio

Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho à conversa, leve ou mais pesarosamente, fundidos na bruma da época, dançando com fantasmas e aparições no nevoeiro sem fim que nos cerca, tentando caçar essas ideias brilhantes que cintilam no escuro, ou descobrir a origem do odor a cadáver adiado, aquela tensão que subtilmente conduz ao silêncio, a censura que persiste neste ambiente que, afinal, continua a sua experiência para instilar em nós o medo puro. Vamos desenterrar, perfumar e puxar para o baile os nossos amigos enterrados no jardim, e deixar as covas abertas para empurrar lá para dentro aqueles que só aí andam a causar pavor e fazer da vida uma austera, apagada e vil tristeza.© 2024 Enterrados no Jardim Art Sciences sociales
Épisodes
  • Um neo-bolchevique na praia lusitana. Conversa com Arturo Zoffman
    Sep 19 2025
    Vamos falando como alguém a quem os dentes foram arrancados das gengivas, mas que, em vez de os cuspir, se dá a um trabalho desgraçado para que não lhe escapem da boca, para não os engolir, esperando a oportunidade de que lhe seja restituído aquele sorriso de antes. Mas quando ao certo? Apesar da insubordinação dos factos materiais contra a ordem fixa das coisas, que há muito estão reduzidas ao seu mero valor de troca, as palavras exprimem uma realidade que já não deveria precisar ser explicada. Não fosse para interromper o modo estuporado de uma cultura que distorceu inteiramente a relação entre a vida e o pensamento. Todas as evidências parecem inúteis, pois buscamos nos outros uma audácia que nos falta a nós mesmos. Não deveria ser preciso, hoje, repetir o repto feito por Bataille na revista Contre-attaque, nos anos 1930, apelando a “violentos sobressaltos de potência” nascidos nas ruas contra a “impotência” das hesitações politiqueiras perante os movimentos fascistas. A verdade é que nos cansamos da nossa própria farsa, pois a nossa exasperação em tentar instigar os outros revela, na verdade, como não estamos a conseguir convencermo-nos sequer a nós próprios. O próprio activismo não é mais, como já sabemos, do que uma renitência em graduarmo-nos através do nosso desespero, preferindo experimentar uma e outra vez a nossa impotência, aguardando que a catástrofe venha enfim tornar irrecusável tudo aquilo que fomos dizendo. “O activista mobiliza-se contra a catástrofe. Não faz mais do que prolongá-la. A sua precipitação consome o pouco de mundo que ainda existe. A resposta activista à urgência permanece ela própria no interior do regime de urgência, sem esperanças de o abandonar ou interromper”, lê-se em “Convocação”, um texto sem assinatura, na linha daquilo a que nos foram habituando os membros do Comité Invisível. Enquanto isso, se “as leis, códigos e decisões de jurisprudência existentes são suficientes para tornar punível qualquer existência, bastando para tal que sejam aplicados à letra”, é evidente que não queremos deixar de estar sob tutela, como se o sentido mais profundo que nos habita é uma espécie de incerteza em relação ao plano, como se não conseguimos deixar de fazer as nossas birras de fedelhos, mas sem levar as coisas a tal ponto de assumir a tarefa de nos governarmos a nós próprios. Habituámo-nos à previsibilidade da história, e aquilo que receamos acima de tudo é que se acabem os castigos. Custa-nos romper, assumir uma força de abjecção diabólica, deixar que a vaga dos sonhos que poderiam arrastar-nos com eles nos levem a fazer algum acto irreversível. Por isso apenas flertamos com essas influências transgressoras. Já sabemos demasiado para o nosso bem. Sabemos como faltou sempre por aqui um conceito radical de liberdade, e que o liberalismo não passa de um regime anquilosado que, com a sua moral humanista, é um perfeito álibi para continuarmos entretidos com as nossas denúncias, as nossas manifestações inofensivas, enquanto toda a comunidade é arruinada, e os grupos se vêem separados dos meios de existência e dos saberes que poderiam dar-lhes as condições de se emanciparem, desertando de vez. Enquanto isso prossegue “a devastação metódica de tudo aquilo que permanecia vivo na relação dos humanos entre si e com os seus mundos” (“Convocação”). Boa parte desses protagonistas envolvidos nas operações de mobilização ficariam já não iriam ser capazes de fazer mais nada se, por um milagre qualquer, se operasse a transformação que tanto dizem buscar. Quanto ao liberalismo já se sabe como este tem como princípio axial a ideia de que tudo deverá ser tolerado, tudo poder ser pensado e manifestado, desde que não afecte de algum a estrutura da sociedade, nem ponha em causa as suas instituições ou o poder do Estado, o qual serve acima de tudo para sustentar a ficção policial em torno das formas de propriedade e a obscena acumulação de capitais nas mãos de muito poucos. “Por outras palavras, a liberdade de pensamento do indivíduo deve ser total, a sua liberdade de expressão também, mas não poderá esperar a concretização das consequências do seu pensamento no que respeita à vida colectiva”, lê-se nas páginas do opúsculo já referido. Parece-nos que 2025 é uma data que deveria estar situada no futuro, mas despertamos a cada dia forçados a reconhecer que estamos condenados a andar às arrecuas, sobretudo se tivermos em conta aquele ideal de liberdade que, segundo Breton, neste mundo, só à custa de milhares de duros sacrifícios poderia ser alcançada, sendo vivida então sem limitações, sem qualquer calculismo pragmático. No fundo, este ideal torna-se ameaçador não apenas para o sistema, mas para o carácter da maioria de nós. De algum modo, o maior triunfo do capitalismo parece ter sido o ter construído um ser à sua imagem, ...
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    3 h et 21 min
  • O existencialismo publicitário. Uma conversa entre os dois monstros de plantão
    Sep 12 2025
    “Una mattina mi son' svegliato…” (Bella Ciao). Na terceira década deste vinte e um, parece que os manifestos de ordem literária são gravados em balas. As palavras com capacidade de ruptura, de suspensão viajam em trajectórias balísticas. Cada tiro carrega uma proposição, um código cheio de carga viral. O atentado ameaça tornar-se o mais pregnante género literário numa época de dissolução das linguagens simbólicas. Este género distingue-se pela concisão absoluta, efeito imediato, impacto sem intermediários. O manifesto literário foi absorvido pelo disparo, num momento em que, mais do que qualquer texto, a imagem determinou que os corpos são os verdadeiros signos, saturando o espaço mediático, num momento em que a aparência consome todo o sentido, em que a estética e a política se confundem. Neste quadro, descontando esses actos mais peremptórios, dos livros, valem os que são escritos com sangue, com a merda, com essas excreções biliosas, essas pedras cultivadas interiormente e que conseguem cortar a luz, devolver-nos a um mundo trevoso. No seu livro, Heróis, Assassínio em Massa e Suicídio, Franco ‘Bifo’ Berardi justifica o seu interesse por esses exemplos de brutalidade espectacular por reconhecer naqueles que a praticam a manifestação extrema de uma das tendências mais chamativas da nossa época: “Neles vejo os heróis de uma época niilista, uma era dominada por uma apavorante estupidez – a do capitalismo financeiro.” No entender deste filósofo italiano, nos nossos dias, o espaço do discurso épico foi ocupado pelas semio-corporações, esses aparatos dos quais emanam as ilusões que ocupam todo o horizonte de aspirações contemporâneas. “Aí reside a origem desta forma de tragédia tardo-moderna, nessa fronteira onde as ilusões são tomadas por realidade e as identidades percebidas como formas genuínas de pertença.” Para Bifo, a raça humana, deixando-se guiar por falsos heróis de enganosa substância electromagnética, perdeu a fé na realidade da vida e dos seus prazeres, e passou a acreditar apenas na infinita multiplicação das imagens. Ele serve-se de uma passagem do livro Os Condenados do Ecrã, em que Hito Steyerl assinala um ponto decisivo nesta transição, recordando o momento em que foi lançado o single Heroes, de David Bowie, em 1977: “Em 1977, a análise da situação iluminada pela banda punk The Stranglers proclama uma obviedade: o heroísmo terminou. Trotsky, Lenine e Shakespeare estão mortos. Enquanto os militantes de esquerda acorrem em massa ao funeral dos membros da Fracção do Exército Vermelho Andreas Baader, Gudrun Ensslin e Jan-Carl Raspe, a capa do álbum dos Stranglers mostra uma gigantesca coroa fúnebre de cravos vermelhos e declara: NÃO MAIS HERÓIS. Nunca mais. Mas também em 1977 David Bowie lança o seu single Heroes. Ele canta um novo tipo de herói, justamente a tempo da revolução neoliberal. O herói morreu, longa vida ao herói! Mas o herói de Bowie já não é um sujeito: é um objecto, uma coisa, uma imagem, um esplêndido fetiche — uma mercadoria imbuída de desejo, ressuscitada para além da miséria do seu próprio fim. Basta olhar para um vídeo de 1977 para perceber porquê: Bowie canta-se a si mesmo a partir de três ângulos simultâneos, com técnicas de sobreposição que triplicam a sua imagem; o herói de Bowie não só foi clonado, como sobretudo tornou-se numa imagem que pode ser reproduzida, multiplicada e copiada, um riff que circula sem esforço em anúncios que promovem quase qualquer coisa, um fetiche que embala como produto a glamourosa e impassível imagem de um Bowie para além dos dois géneros. O herói de Bowie já não é um ser humano maior que a vida, a cumprir missões sensacionais e exemplares; nem sequer é um ícone, mas um produto resplandecente dotado de beleza pós-humana: uma imagem e nada mais que uma imagem. A imortalidade deste herói já não provém da sua força para sobreviver a qualquer prova, mas da sua capacidade de ser fotocopiado, reciclado e reencarnado. A destruição alterará a sua forma e aparência, mas a sua substância permanecerá intacta. A imortalidade da coisa é a sua finitude, não a sua eternidade.” Face a este fenómeno seria possível identificar hoje um existencialismo de natureza puramente publicitária. Se ontem este nascia da náusea, e o homem lançado ao mundo era forçado a reconhecer-se livre, responsável, sem desculpa. Hoje, essa náusea foi estetizada, reciclada, convertida em branding. O que resta do ser não é o abismo da liberdade, mas a superfície brilhante do cartaz. Cada sujeito, em vez de se saber condenado à liberdade, descobre-se condenado à visibilidade. A nova metafísica é publicitária. A vida não se projecta — promove-se. O projecto sartriano, essa construção singular que respondia à contingência, converteu-se em storytelling padronizado. Já não me invento no risco de cada gesto, mas ...
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    3 h et 53 min
  • Entre a merda e o infinito não cabe um grão de areia. Outra conversa com Andreia Farinha
    Jul 12 2025
    Com este título roubado ao Zetho, neste que é o derradeiro episódio antes de nos retirarmos para cumprir com as obrigações do período estival, deixamos aqui um trilho algo caótico, um episódio que vai pela linha incerta entre a desintegração e a degeneração. Há um mecanismo de fatalidade que temos procurado desmontar, mas é difícil saber até que ponto a compulsão para interpretar o mundo não acaba por nos tornar reféns dos seus processos, como esses queixumes a que tantos se entregam e que acabam por inspirar e alicerçar o inferno no qual se encerram. Há certamente, hoje, uma propensão excessiva para os diagnósticos, um modo de infelicidade que é produzida por esse falar fiado que impede qualquer impulso de romper com todo este infortúnio, que, assim, faz de nós os seus publicitários. "Não é elegante abusar da infelicidade; certos indivíduos, bem como certos povos, de tal modo se comprazem nela que desonram a tragédia", escreve Cioran num dos seus silogismos da amargura. Deste lado estamos exaustos, apanhados pelos ritmos, pulsões e padrões de forças que temos dificuldade em compreender. Seria bom se pudéssemos fazer férias noutro tempo, arrastar-nos até ao passado e buscar uma outra textura para a realidade. A actual dá-nos asma. O próprio tempo vem se tornando cada vez mais um problema. Diz-nos Camus que, "quando o observamos, o tempo não anda depressa. Sente-se vigiado. Mas depois aproveita-se das nossas distracções. É até possível que existam dois tempos: o que observamos e o que nos transforma." Hoje, temos amiúde a sensação de ser impossível tirar férias, como se não houvesse distância suficiente para conseguir arrancar este zumbido que se nos infiltrou no sangue. Por vezes, busca-se aquele olhar que se demora entre o desencanto e a compaixão pelo mundo, como se o olhássemos a partir de um outro planeta. E se a contemplação do caos acaba por dar cabo de toda a confiança ou ilusão, para alguns só restam as boas maneiras, uma certa elegância, ou, à falta disso, um puro estilo, que não seja uma mera afectação, mas isso que alimentava nos espíritos melancólicos do século dezanove a ideia de que este acaba por ser um substituto da bondade. Enquanto as manias tirânicas do nosso tempo e o egoísmo daqueles que vivem fascinados com as possibilidades que ele oferece nos fazem sentir a mais, como estrangeiros incapazes de sentir qualquer apelo por estes costumes e valores, começamos a ter a sensação de que aquilo que distingue a cultura desta época é o facto de esta só poder ser adquirida em segunda-mão, através dos rumores e intrigas ou da nostalgia que ela provoca noutras pessoas. Pela nossa parte, estamos comprometidos com os estranhos, com esse anonimato familiar que é sempre possível dissimular, tentando livrar-nos das imposturas do ego. Sentimos falta de lugares de que ouvimos falar, desses cafés onde iam parar os náufragos de cada época, que apareciam ali sozinhos dispersos pelas mesas, devastados pela sensação de desequilíbrio entre os seus espíritos e o mundo. Claudio Magris fala-nos desses cafés que eram como hospícios para aqueles que carregam no sangue essas sombras separadas do tempo. A verdadeira conversa, que podia ser uma distracção afável, começa a ser um bem demasiado escasso. Sem a escuta, sem esse efeito de transfusão de sombras, as palavras soam cada vez mais enfraquecidas. “Hoje em dia já quase não se pensa — só se fala", anotava Musil nos seus diários. “A palavra é, cada vez mais, um adereço. Diz-se tudo e o seu contrário com a mesma confiança retórica”, acrescentava no seu grande romance inacabado. E nem é propriamente o que se diz que nos desgasta, mas a vagueza, a inércia, que acaba por gerar esse grau de convicção puramente histérico, esse fluxo morno de convicções instantâneas, que cresce como uma vegetação pegajosa sobre tudo o que antes exigia silêncio. O país (mas qual ao certo?) parecia ter sido tomado por uma peste sem micróbio. Embriagados pelo desamparo, confundindo expressão com existência, todos falavam, ninguém hesitava. Havia qualquer coisa de obsceno no modo como os discursos se substituíam à atenção, como se as palavras servissem não para indicar, mas para evitar. E a linguagem, esse instrumento outrora tão delicado — como a vareta de um físico ou a pena de um calígrafo chinês —, fora reduzida à função de cobertura: cobrir a ausência, disfarçar o abismo, não dizer. Talvez fosse isso, pensava Ulrich, o novo ideal espiritual da época: dizer tudo para não escutar nada. Falar não por excesso de alma, mas por défice de realidade. Farta de tudo isto, depois do expediente, a Andreia Farinha aceitou a proposta indecente que lhe fizemos de vir rematar a série, e veio desacertar-nos ainda mais as voltas, trazer a desordem de que é íntima como poucos, reconhecer-se na figura do criminoso Moosbrugger, gozando toda a licença da ...
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    3 h et 46 min
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